Mudou-se o tempo
Estou em crer que um dos bons indicadores do avanço da idade é o abandono de alguns marcadores temporais que até então orientavam a nossa marcha pelos meses adentro. O princípio da vida alicerça-se no ritmo escolar, a nostalgia de setembro, a alegria de dezembro, o frio de janeiro (no sítio onde nasci, esperávamos os nevões para ficar em casa nos dias de aulas), a confusão de maio-abril-março-junho (é assim a ordem certa?), o final do ano, o verão eterno.
Por estes dias, no entanto, sinto o peso da idade adulta no escoar do tempo por entre os dedos. Ainda agora desfilávamos avenida abaixo, porque era Abril, e pelos vistos está na altura terrível dos exames finais do ensino secundário, o que me recorda também as longuíssimas jornadas de explicações de física e química, cuja professora daria para dois ou três romances, letra pequena. Lembro com humor uma sua frase clássica, que repetia depois de receber os nossos envelopes cheios de notas - o peso impossível dos envelopes, querida mãe -, e de os atirar com alguma violência para o chão do escritório: "meus queridos, o chão é a maior mesa que temos!". Frase que, sendo um pouco rude no contexto, vivificaria mais tarde, plena de novos significados, nos filmes de Ozu em que os cenários de baixa altura, a câmara pendente rasteira ao chão e a convivialidade japonesa impõe no chão que pisamos a função de grandiosa arena da vida comum.
Às vezes posso jurar ser a vida como um livro que deixamos aberto, por acaso, apenas para ir ali tirar um café, ou abrir a porta ao carteiro, e cujas páginas deslizam: primeiro muito suavemente, depois tudo de uma só vez: até um novo capítulo, cá a jusante na narrativa, e duas ou três palavras insistem em penetrar os nossos olhos e marcar lugar na nossa memória. Nos livros é possível ter um vislumbre do futuro, no inglês mais bonito, um glimpse of the future.
Ainda agora me deixavas, desterrado no fevereiro frio, e já hoje nascem em mim novas flores, que juraria não ver ontem. Árido fui, mas só da ignorância de mim mesmo. Tu, que sempre vias mais longe, sei que talvez tenhas também ponderado o meu direito a florir. E agradeço.
Pedem-me do serviço que realize a marcação de férias, sei lá eu para quando programar o descanso. Se súbito um vento me enterrasse no poço das minhas lamentações, e fosse, digamos, uma terça feira de setembro - aqui recordo Clarice Falcão, artista de abraçar -, desejaria logo para a quarta feira seguinte o direito a um dia mergulhado em lençóis, filmes e comida de merda.
Se todas as famílias infelizes o são cada uma à sua maneira, todas as famílias pobres são felizes de uma mesma forma alegre: a imaginar o que fariam se ganhassem o Euromilhões. É claro que somos incapazes de saber o que fazer com tanto dinheiro. O que fascina os vícios do jogo não é o valor na conta corrente, é o sabor, ou antes, a intuição de qual seria o sabor da liberdade. A possibilidade de dizer um dia ao patrão (falo hipoteticamente, para efeitos legais): chefe, vou-me embora, que esta merda não é pra mim, sem estar suscetível a represálias ou consequências gravosas: essa é que é a grande fantasia da idade adulta.
Teria mais algumas coisas a escrever, mas fico-me por aqui.