Lírio e Tulipa
Abri a janela. Entrou uma forte rajada de vento que fez tiritar as chávenas do café. Eram, apesar de tudo, as nossas chávenas de café. Embora quebradas, com as tinturas diluídas, com a memória da borra esgravatada ao fundo. O nosso café. De quando viemos finalmente morar para o alto da Estrela, perdendo a vista nas muralhas de ferro da vizinha e no verde profundo do jardim.
Um dia o mundo todo será apenas natureza, e acordar será como sair do sono dentro de uma alfarrobeira. Isto eu finjo que me disseste um dia, para inventar memórias poéticas. Preciso delas para beber de novo um café nesta chávena pequena, cada trago me traz uma recordação tua: a maneira como brincavas com os miúdos, a maneira como não sabias dançar, a maneira como desarrumavas a cozinha de alto a baixo para fazer um bolo medíocre, a maneira como me agarravas pelas costas, de surpresa, e dizias qualquer coisa sobre eu ser a tua sorte grande. Lembro também os teus períodos de ausência, confuso na poltrona da sala a revirar folhas e folhas dos nossos álbuns de fotografias. Um dia o mundo todo será uma alfarrobeira, e acordar será como sair do sono dentro da natureza. Não é assim, porra. Onde raio pus a cabeça.
Hoje não trabalhei grande coisa. A cabeça encheu-se-me daquele vento. Um balão só rebenta porque não aguenta mais. Em algumas alturas sinto que as minhas palavras são limpas e pontiagudas, espinhos ou a ponta de um florete, rápido junto ao corpo do adversário que esgrima. A forma das palavras segue as leis de uma incerta intencionalidade. Cubro os ombros com um casaco velho para ir passear as flores: o Lírio, coitado, apareceu por aí aos caídos, cheio de fome e cheio de sede, salvei-o; a Tulipa tem raça superior, costumavas dizer que se lhe nomeássemos todos os apelidos, nunca mais saíamos dali.
Mas, meu amor, eu penso que já não vamos sair daqui. E a culpa não é dos apelidos da cadela. Nem minha, nem tua. Andámos tanto para aqui chegar. Preciso de me concentrar para não escorregar na calçada.
Tanta noite em branco, tanta página, tanta complicação, tanta gritaria, tanto café: agora que chegámos aqui, onde estás, que não te vejo?